Uma história em que pobreza, padrão eurocêntrico de beleza e cultura racista se chocam vem movimentando a internet. Um mendigo fotografado em Curitiba está sendo assunto em todo o Brasil, por ser um branco de olhos azuis “mas” ter sido castigado pela pobreza mendicante. Quando sabemos dessa novidade e a comparamos com a vida de milhares de outros mendigos pelo Brasil, percebemos o quanto a cultura brasileira ainda é muito impregnada de racismo.
O mendigo branco, cujo nome, Rafael Nunes, já foi revelado, vive nas ruas de Curitiba e posou para a foto desejando “ser colocado no rádio” para ficar famoso. A fotografia foi posta no Facebook e agora campeia pelo Brasil inteiro, chamando atenção de mulheres e homens. Ora é considerado “lindo de morrer”, com muitas mulheres querendo namorá-lo e abrigá-lo, encantadas com a beleza dele; ora vem sendo candidato às passarelas da moda, como o modelo “dos sonhos” das grifes; ora tem sua mendicância posta em dúvida principalmente por ser um branco de olhos azuis, parecido demais com um europeu para ter sua pobreza reconhecida. As opiniões convergem em sua maioria a um ponto: ele é lindo demais para continuar mendigo.
E enquanto isso, no mesmo Brasil, inclusive na mesma Curitiba, milhares de negros e pardos padecem de miséria igual ou pior, mas por sua vez permanecem tratados como rejeitos da sociedade, como seres dignos de nada mais do que pena ou virada de rostos. Muitos ainda clamam pela mídia, por um pouco de atenção e humanitarismo, e tudo o que conseguem são poucos minutos na TV ou no rádio, algumas doações e, com sorte, uma assistência de alguma ONG ou do órgão oficial de serviço social da prefeitura. Mas praticamente nunca são abraçados pelo padrão cultural de beleza dominante no país, tornados celebridades instantâneas em função de sua aparência física e alçados a modelos “sarados” e adorados.
É aí que começamos a pensar: se fosse um negro de fortes traços africanos ou um mulato, seria prontamente rejeitado em sua demanda de “ser colocado no rádio” ou receber ajuda humanitária, empregatícia e/ou habitacional de algum político ou empresa. Não chamaria a atenção de virtualmente ninguém na internet, fora algumas meias-dúzias de moças ou rapazes que gostam da beleza negra. Seria apenas mais um entre milhares de mendigos que vagam pelos centros das cidades do Brasil; sua foto seria vista com desdém pela sociedade, e ele voltaria, logo após a fotografia, às ruas para ali viver por tempo indeterminado, senão para sempre.
Em outras palavras, para nossa sociedade, não é normal ver em mendicância e miséria um branco de aparência europeia. Para ela, brancos merecem muito mais do que isso. Mas, por outro lado, ter negros nas ruas pedindo esmolas e implorando por dignidade é considerado algo mais que normal. É tradição já. Por que eles merecem ser alçados a modelos a serviço da alta costura? Que se virem, vão trabalhar, procurar um emprego, correr atrás da escola aonde não foram na infância -– assim pensa grande parte da sociedade que está agora se compadecendo com o pedinte eurodescendente.
Se fosse negro, sendo ou não um imigrante, seria considerado “feio”, rebaixado a apenas “mais um” e continuaria visto como um mero rejeito a ser tratado como lixo pela sociedade, pelo Estado e por seu braço violento, a polícia.
Se os brasileiros parassem de achar normal haver negros em miséria nas ruas e começassem a apreciar o padrão de beleza deles, será que passaríamos a ver as passarelas lotadas de ex-mendigos, fazendo companhia profissionalmente com o curitibano? Não, porque o racismo, destacadamente em suas vertentes social e estética, continua imperando forte e fazendo os brasileiros de todas as cores acharem brancos melhores que negros apenas por terem pele, cabelo e olhos claros.
Texto de Robson Fernando de Souza, publicado em 17 de outubro.